O epitáfio de um Faria Limer

A televisão da praça de alimentação lotada exibia a manchete do dia: Polícia arquiva investigação sobre morte misteriosa na Av. Faria Lima. Rafael já estava cansado de ouvir sobre aquele caso. Para ele, estava óbvio que era um suicídio ou um acidente. E daí que era esquisito? As coisas são como são. O esquisito ainda acontece. Coincidências acontecem.

Seu grupo de amigos concordava. Julgavam o caso weird, mas circunstancial. As portas no andar de onde o homem pulou ou caiu não haviam sido arrombadas e não havia mais ninguém na sede da empresa. São Paulo não era cenário de filme de terror, nem a Londres de Sherlock Holmes. Não havia nenhum serial-killer à solta. Rafael imaginava que a pessoa provavelmente só tropeçou e se apoiou no vidro que não suportou seu peso.

Sem energia para entrar outra vez naquele assunto, revirou os olhos enquanto seus colegas de trabalho o iniciavam. Estava preocupado com uma deadline que se aproximava. Deia estava encucada com a situação e não ficava mais sozinha na sede da empresa desde o acontecido. Rafael fazia um bingo mental com as frases de teorias da conspiração que ela soltava sempre que tinha chance. Wal, seu chefe, olhava para ele e arqueava uma sobrancelha, segurando uma risada, toda vez que ela começava a falar. Rafael precisava se segurar para não rir também.

Enquanto eles mudaram o rumo da conversa para algo sobre compliance e calls importantes que precisavam fazer, ele começou a escanear a praça com os olhos e encontrou apenas uma mesa grande o suficiente para o grupo todo. Prontamente, tirou o crachá do pescoço e o colocou sobre o mármore amarelado, reservando o lugar. Levantou o braço e sinalizou para que André e Marco também se juntassem à ele. Os dois acenaram com a cabeça e sinalizaram que fariam seus pedidos antes de sentar. Rafael resolveu fazer o mesmo; deixou o crachá ali, marcando o lugar, e foi até um restaurante japonês.

Por preguiça de caminhar até a mesa e voltar, esperou a comida ficar pronta apoiado na bancada do restaurante. Com a bandeja em mãos, começou a andar rumo à mesa. Encontrou Deia e Marco, confusos, olhando para os lados, o restante do grupo ainda nas filas. Rafael identificou com dificuldade a mesa que, a princípio, era deles. Andou até lá e avisou os seus ocupantes que o crachá estava ali antes deles se sentarem, deixando implícito que deveriam sair.— Não tinha crachá nenhum quando sentamos. 

— Avisou um senhor calvo sentado à mesa, visivelmente irritado com a situação.

Rafael revirou os olhos mais uma vez:

— É claro que tinha! Deixei bem aqui, man. — Apontou para o mármore.

Percebendo que o crachá não estava no local, se abaixou para ver se havia caído no chão. À alguns passos de distância, encontrou apenas o cordão que usava para pendurá-lo no pescoço. O plástico com sua foto e nome havia sumido.

Rafael se afastou da mesa perdida acompanhado por seus colegas, enquanto ouviam o senhor resmungando algo sobre serem moleques abusados. Sem dar muita atenção, o grupo se dividiu nas mesas mais altas e cada uma das duplas engatou em conversas paralelas enquanto comia. Rafael não conseguiu prestar muita atenção no assunto do qual André falava, então se limitava a rir quando parecia oportuno. Após estarem satisfeitos, se levantaram e começaram a sair do Iguatemi, caminhando até o prédio onde passariam as próximas horas.

O edifício, visto da rua, parecia alcançar o céu. No meio dele, havia uma abertura no vidro, coberta por compensado. Rafael sabia que, por dentro, haviam fitas zebradas de isolamento. Era de onde o dono da famosa morte misteriosa havia pulado ou caído.

Ao chegar ao escritório, Rafael foi direto até a moça do RH para pedir um novo crachá. Ele explicou a situação e ela franziu a testa.

— Que estranho… Você é o quarto caso assim essa semana.

Rafael rolou os olhos, desinteressado na história da mulher, que entendeu o recado e seguiu com o processo para conseguir uma nova identificação para o funcionário. Avisou que estaria pronta em dois dias. Rafael acenou com a cabeça e saiu.

Naquela noite, enquanto assistia Suits, sua série favorita, e comia um crostini de tapenade com azeitona, ouviu alguém fazendo barulho no corredor de seu prédio. Aumentou o volume da televisão, irritado pela falta de respeito dos vizinhos. O barulho parou logo e Rafael se aconchegou mais no sofá, apoiando a cabeça em uma das almofadas. Seus olhos começaram a fechar lentamente, contra sua vontade. O som da TV ficava cada vez mais distante, até sumir.

O homem viu a tela da TV escurecer e não mostrar mais nenhuma imagem, mas não por comando seu. O controle estava na mesinha de centro, não em sua mão. O cérebro sonolento de Rafael se esforçou para estranhar o acontecido, mas não conseguiu fazê-lo antes de adormecer por completo.

Ele abriu os olhos bastante grogue, sendo surpreendido pela intensa luz do dia e um vento fresco. Seu apartamento não pegava sol de manhã, o que logo colocou Rafael em estado de alerta. Olhou em volta e se percebeu parado na na beira de uma janela muito alta. Ele tentou dar um passo para trás, mas não conseguiu. Duas mãos em suas costas o impediam.

Seu cérebro começou a acordar direito, mas Rafael ainda sentia como se estivesse num sonho onde não tinha completo controle de seus membros e não conseguia correr rápido o suficiente para se salvar do monstro que o perseguia. O desespero começou a consumir seu corpo e ele tentou se virar, para ver quem o ameaçava.

Ao conseguir, encontrou um homem velho e calvo, com roupas gastas e uma cara irritada. Pensou reconhecer seu rosto, mas não sabia de onde. Rafael tentava gritar por ajuda, pedir por misericórdia, perguntar os motivos daquele velho para atacá-lo. O velho continuava segurando seu corpo, que estava enrolado em uma corda frouxa e sem muito propósito.

Rafael analisou seu entorno mais uma vez e percebeu estar em um dos muitos andares do prédio em que trabalhava. Pela luz, não devia ser muito mais que 6h da manhã; logo o prédio se encheria de trabalhadores. A Av. Faria Lima já estava barulhenta e era ouvida daquela altura. Ele percebeu, então, as placas de compensado caídas aos seus pés, cuidadosamente retiradas do local em que estavam pregadas.

Algo clicou em seu cérebro e ele percebeu que estava naquele andar. As fitas zebradas estavam arrebentadas e esvoaçavam para fora da janela não planejada. Ele olhou para o velho mais uma vez, de olhos arregalados, e seu olhar foi recebido por uma expressão fria, que beirava a diversão.

— Moleque abusado. — Ouviu o velho dizer.

Antes que pudesse raciocinar, já estava caindo. Sentia a corda se desenrolando do seu corpo enquanto o vento fresco da queda o envolvia. Pensou que, talvez, sobrevivesse. Que queria que a investigação fosse até o fim dessa vez. Que a morte misteriosa não tinha sido acidente. Olhou para baixo e viu os patinetes de aluguel alinhados na calçada. Ao longe, pensou ter visto a si mesmo e ao seu grupo de colegas voltando do Iguatemi no dia anterior e encarando o esplendor do edifício.

Não percebeu que a corda frouxa estava amarrada em seu pescoço até que fosse tarde demais.

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